Sobre nós


O blog “Falando do B” tem como objetivo resgatar a história de um grande sucesso do Jornal do Brasil, o Caderno B. Os alunos da FACHA (Méier) desejam mostrar o início desse suplemento, a sua fase áurea, os grandes escritores e jornalistas que trabalharam no caderno e o quanto ele foi importante, visto que inaugurou uma área cultural até então inexplorada pelo jornalismo brasileiro. Os cadernos culturais se transformaram em objeto de desejo da maioria dos jornais depois de sua criação. O Caderno B foi o pioneiro e até hoje nós podemos curtir esse trabalho diariamente no JB.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Marina Colasanti: Como quem volta


Como quem volta à casa antiga, chego e me instalo. Mas não é uma casa antiga. É uma antiga casa nova, pois é para fazer o novo que fomos convocados.
Existe o novo? me pergunto. Um novo desvinculado de tudo o que o antecedeu, um novo primeiro, inaugural, que nasce consigo?
Quando entrei no Caderno B a primeira vez, havia palmeirinhas no patamar da escada, vidros jateados com arabescos separando as salas e linóleo verde no tampo das mesas, debaixo das máquinas de escrever. Eu também tinha um estremecimento de palmeiras na alma, farfalhar de medo e insegurança. Tudo era novo para mim. Vinha de belas-artes, jornalismo só se aprendia na redação e era terreno de gente atirada, ruidosa, homens, de preferência. Eu ali hesitante, sem me sentir atirada, sem saber onde me punha, sem saber como agir, o que dizer, sem saber. E nada ruidosa.
Anos depois chegaria ao jornal armada, porque havia ameaça de invasão por parte dos militares. Entreguei a Carlos Lemos, então secretário do jornal, a pistola Beretta 22 que levava na bolsa, quase uma bijuteria que meu pai havia me dado para me proteger, porque morava sozinha com meu irmão no Parque Lage. Não lembro, mas certamente Lemos sorriu do meu gesto de valentia. Já não era a mocinha hesitante que havia chegado àquela casa, era a jornalista disposta a defendê-la.

Aqui aprendi tudo o que havia para se aprender em jornalismo. Até a falar alto e a contar piadas, mais alto nos dias em que fazíamos o fechamento de três cadernos e a redação ficava tensa, de olho no relógio. E aprendi com Amílcar de Castro a ousadia estética que havia sido inaugurada por Reynaldo Jardim, e que nunca mais esqueceria, a guilhotina agindo sobre as fotos com entusiasmo de revolução francesa.

Máquinas de escrever, linóleo, guilhotina, fotos em papel, que antiga deve parecer a um jovem essa conversa. E, no entanto, apesar de eu ter passado pela cerimônia de iniciação de todo jovem jornalista daquela época - descer à oficina e ter o próprio nome fundido em chumbo pelo linotipista, nome que, com seu novo peso, ainda guardo em alguma gaveta - éramos moderníssimos.

Não sei se ainda saberíamos produzir uma modernidade igual àquela. Como se o novo só se concretizasse depois de emitido pelo Caderno B. Éramos todos repórteres investigativos do novo, daquilo que, como ainda não se dizia mas já existia igualzinho, acabava de pintar nas bocas. Ou melhor, que se preparava para pintar nas bocas e que só pintaria, de fato, depois de sacramentado pelo B. Passar o fim de semana sem ter lido antes o Caderno B era um risco que os descolados não se permitiam.

Em certo momento criamos - digo criamos por vaidade, pois quem criou mesmo foi Alberto Dines, nós apenas realizamos - a Página de Verão. Começava a esquentar, mudava o horário e lá íamos nós. Que alegria fazê-la, viver a cidade que nem sabujo, farejando pelos cantos, antenas sempre ligadas, olho nos detalhes, nos esboços, nos nascedouros. E a cidade toda, não apenas a Zona Sul, embora a Zona Sul, et pour cause, fosse a nossa praia. Uma crônica, uma coluna, uma reportagem, assim era a Página. E ilustrações a traço. Durante alguns anos, a impressão que tivemos era de que o verão não aconteceria em sua plenitude sem ela. Mas as páginas são sempre mais propensas a acabar do que os verões.

Tivemos o Jornal de Poesia, página dupla, mensal, com o que de mais atual estivesse ocorrendo entre os bardos. Lira tocando na imprensa diária, como nunca depois.

E durante oito anos, barbarizamos no teatro. Nunca mais o Rio teve uma cobertura teatral como naquele período. Era editor Paulo Affonso Grisolli, que acabou de falecer em Portugal. Diretor de teatro, e mais tarde de televisão, ele ensaiava de um lado, editava do outro, sempre de olho nos palcos. A redação se encheu de gente de teatro, uns que vinham conversar, outros que eram redatores, como Luis Carlos Maciel e Tite de Lemos. Cheguei até a fazer os figurinos para uma peça de Grisolli que apresentamos no MAM, tudo modesto, tudo sem dinheiro, mas parte da efervescência que vivíamos e que levávamos para as mesas com tampo de linóleo.

Gente maravilhosa passou por elas. Quando adentrei no B, quem mais se alegrou foi José Ramos Tinhorão, que, não sendo ainda essa sumidade da MPB, era redator. Cabia a ele, até então, por falta de mulher na redação, fazer as matérias femininas. Com a minha chegada, nunca mais teve que se preocupar com a altura das bainhas. Nonato Masson, especialista em cangaço, editor, que criou sessões memoráveis como Onde o Rio é Mais Carioca. Cláudio Mello e Souza, o poeta com peito de havaiano, como o definia Nelson Rodrigues. João Antônio, redator tímido que em silêncio afiava suas garras para as letras, e que um dia me mostrou, com alma exposta, os contos que acabara de mandar para o concurso literário do Paraná. Roberto Drummond, que tinha medo do Rio, que tinha medo do mundo, que sentava a um canto com as costas contra a parede e de vez em quando fugia para Belo Horizonte para nunca mais voltar, até que não voltou. Juarez Barroso, belo contista que só não produziu ampla obra porque morreu cedo. Carlos Eduardo Novaes, que ali consolidou seu humor. Fernando Gabeira, a quem eu dava carona na volta e que enfrentava o trânsito com longos discursos políticos. E o inigualável time dos cronistas, Clarice, Drummond, Sabino e o recém-republicado Carlinhos.

A velha nova casa guarda ainda as pegadas dos antigos habitantes. O nosso desafio agora é fazer um caderno tão novo quanto aquele que fizemos juntos.
Por Jéssica Lima e Priscilla Diniz

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